Cristal Quebrado
revisão Brenda & Lucius
editoração Hemiliano Costado
direção Ana Brandão
Edição hh

foto antiga, livre na rede:
caçambas aéreas da Mineração Morro Velho  Nova Lima - MG
para transporte de minério,
ao fundo a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, e o Morro do Elefante

* Crônica
.

Não muitos privilegiados tiveram o prazer de jogar uma partida de Xadrez ao ar livre no adro da Igreja do Rosário numa tarde, manhã ou noite dessas - lá pela década de 70 em minha cidade Nova Lima.

O velho Rosário é um dos bairros mais idosos da cidade - já que as terras da mina responsável pelo surgimento do lugarejo escorrem naturalmente morro acima. Fundem-se os quintais com a propriedade da mineradora. Ao vento e ao sol, as cercas de arames de aço por mais de três séculos secaram as fardas dos milhares de guerreiros que impregnaram aquelas ricas pedras com suor, sangue e suas vidas, até tudo, num belo dia, sucumbir drenado e sugado. Adeus às toneladas de ouro que foram embora sem deixarem quase nada em benefícios para trás... talvez alguns privilegiados que enriqueceram a si e suas famílias às custas da miséria da maioria.

O bairro com certeza é e sempre foi o centro cultural de Nova Lima e toda a região. Com sua identidade própria, nos diz em tudo, que tem espírito e tem alma.
No Rosário tudo inspira sorriso, arte, cultura e certa excentricidade teológica, social, sensual e moleque, oculta e distraída, malandramente.

Vem do seu cinema, dos três cemitérios - um extinto onde foram enterrados os restos dos escravos que construíram a igreja e hoje jaz sob os escritórios da Copasa ao lado da igreja, que por justiça deveria ser a quadra da Escola de Samba Unidos do Rosário e das Guardas de Congado. Outro cemitério, hoje o mais antigo e ainda em atividade, perto ou mais de seus 300 anos. Esse espírito peculiar também vem da banda, das pastorinhas, do congado,
 do alto-falante de José de Matos pendurado no abacateiro, vem da escola de samba, dos times de futebol, da pensão de Dona Anita no meio da praça, dos bares, da sinuca, do carteado, da cachaça, das insinuações da casa de Dona Suzana no pé do morro, vem dos cruzeiros, da igreja, e das caçambas outrora penduras em quilômetros de cabos de aço que se arrastavam dia após dias, anos e décadas sobrevoando a cidade em inimaginável altura para nós crianças acompanhando com os dedinhos  aqueles estranhos pássaros pretos.
Mas, no Rosário voavam baixo revelando suas asas de ferro e o odor de piche. Escovavam e empretejavam as moitas de capim e as vassouras
com essa graxa pegajosa, a meio metro de altura do chão e mais outros dois ou três metros passando juntinho às cercas das ruas.
Dali saltavam de torre em torre para o ponto mais alto ao se afastarem do Rosário para sobrepujarem outros morros e encostas deixando a Fábrica de Balas para trás, o hospital Nossa Senhora de Lourdes, flutuando lentamente para o vilarejo do Galo. 
Então, nos meses frios, nas manhãs emolduradas por um sol oculto, mergulhavam no mar de neblina e nuvens densas até desaparecerem nas sombras verdes das
montanhas.



E ainda temos o samba, as peladas, a malandragem, o folclore, o Judas, as quadrilhas de roda, as barraquinhas, a labuta diária, o dialeto peculiar da comunidade e os artistas do morro... como posso entender o surgimento do jogo do xadrez ali?
De onde veio? com quem começou? e para onde foi?
Não sei dizer e não conheço ninguém que o saiba. Só o que posso dizer é que foram dias e noites maravilhosos e emocionantes.

Não havia idade, credo, cor, sexo ou ideologia... qualquer um enfrentava qualquer um no mano a mano por horas a fio, ou por segundos... é verdade! havia partidas que duravam segundos. Você poderia encarar um player antigo, experiente e a partida durar uma hora ou duas semanas, ou pegar um novato que mal sabia de cor os nomes do jogo, porque não havia também distinção de habilidade. Você poderia desafiar qualquer um... e o desafiado não tinha o direito de recusar.

Éramos quase todos adolescente exceto alguns pentelhos mais velhos que apareciam para estragar o jogo com lances ensaiados, palpites infelizes, zombarias sexistas e inveja, muita inveja...

Mas eram divertidos, no fundo era tudo muito divertido.

Nossos tabuleiros às dezenas, na maioria das vezes, eram desenhados a carvão nos graus do adro, motivo para brigas com D. Iêta e Sô João Veludo, cuidadores da igreja, e as peças eram tampinhas de garrafas viradas pra cima com o nome da figura que ela representava rabiscado na cortiça ou naquele plástico no fundo. Isso, às vezes, provocava um fuzuê danado: a tampinha suava soltando a tinta da caneta ou neguinho metia o dedão em cima borrando de propósito o nome da peça. Aí de repente um Peão começava a saltar como um Cavalo ou andar em zigue-zague como um Bispo, e o pau quebrava!

Confesso, nada era tão divertido e democrático como aquelas partidas de xadrez intermináveis no alto do Rosário. Vinha meninos e algumas meninas de todo canto da cidade. Aparecia gente nunca vista antes e nunca mais depois. Eram derrotados, se enfureciam e desapareciam. Acho que se sentiam humilhados na sua fama de grandes enxadristas por serem derrotados por ‘moleques’ de 11 anos, 13 anos, 15 anos...
Tinha o paradoxo também, aquele sujeito que perdia todas, mas nunca desistia. Sempre voltava e sempre perdia. Saia xingando todo mundo em brados e palavrões, que fora roubado, que éramos pivetes de rua, maconheiros, vagabumdos...  rsrs  no entanto, no dia seguinte, lá estava ele de novo... e eram muitos assim.

 
A magia estava na lógica da vitória. Ninguém ali perdia ou ganhava como cavalheiros. Gritávamos, pulávamos, fazíamos todas as macaquices e grunhidos dignos de um gol em pleno Alçapão do Bonfim. Isso aumentava a glória do vencedor, e a raiva e humilhação do derrotado...

Naqueles primeiros tempos fazíamos um jogo intuitivo, baseado unicamente na inteligência. Nada era preparado. Você contava unicamente com as experiências de outras partidas, sua memória, sua criatividade e seu controle emocional - porque o adversário fazia e faria tudo para irritá-lo, e por fim, tirar sua concentração. Isso ia desde comentar lances futuros em voz alta, a ofensas morais pessoais e de familiares, cutucadas pelo corpo, tapas na cabeça e, não raro, um ‘Vou ali e volto!’ fazendo uma partida fácil se arrastar por horas.

O que mais me irritava eram os tapas e piabas na orelha. Aquilo sim me enervava. Um ódio ía crescendo no estômago e lá pelos cinco ou seis tapas e biloscadas, a explosão em pernadas e tapas degraus abaixo.

Era um duro aprendizado. Vencia quem aprendia mais rápido. Você tinha que sobreviver a tudo isso. Dar o seu xeque-mate ou levar o oponente a abandonar a peleja. Simples assim, apenas você e seus próprios recursos. Seu poder cognitivo, sua imaginação, sua intuição, sua inteligência emocional, sua perseverança e ousadia. Só você e um milenar jogo de intrigas, guerras e conquistas...

Mas no inverno de 1972, eu já aos 17, o jogo mudou para sempre.

Vi meu herói russo Boris Spassky campeão de xadrez mundial não fugir ao desafio de um americano em plena Guerra Fria e no ápice do pior momento das relações entre essas nações.

Muita gente acredita que o pior momento na relação entre Rússia e Estados Unidos foi aquele em 1962, com os mísseis soviéticos em Cuba ou a queda em 60 do supersônico espião U2 em solo russo. Não, não foram esses os piores momentos na tensão das superpotências nucleares. Nem no assassinato de Kennedy ou nas intempestivas provocações do general americano Patton aos Russos logo após os aliados entrarem em Berlin. Patton foi arrancado de seu comando e mandado de volta aos Estados Unidos. Morreu providencialmente no caminho. Seu avião 'caiu'.

Ele tinha popularidade o bastante para sair das Forças Armadas e virar Presidente. A Suspeita de sua morte persiste até hoje: quem fez o serviço? a KGB, a CIA, o Exército, ou o Acaso?  

Contudo, a coisa ficou feia mesmo foi nos meados da década de 70 quando a Rússia, eternamente mergulhada em corrupção e incompetência, começou a bambear as pernas deixando transparecer que não era e nunca foi a superpotência que todos acreditavam, graças aos megas engodos empresariais e militares, e à propaganda enganosa vendida ao mundo por uma mídia controlada com mãos de ferro.

A Rússia, como um poderoso predador ferido, voltou a ameaçava a todos, prender, matar e desaparecer como só o fizera na época de Lênin e Stalin 50 anos antes. Alardeou que aumentou seu arsenal nuclear, que invadiria esse e aquele país, que militarizaria o espaço...
Por outro lado, os Estados Unidos, espalhavam terror e ditaduras por todas as Américas financiando, através da CIA e do FMI, governos corruptos e sanguinários no Chile, na Argentina, aqui no Brasil, Nicarágua, etc...
O que, em contrapartida, impulsionou o surgimento de grupos de resistência e guerrilha por toda a América, África, Ásia e Oceania, financiados pelos soviéticos...

E no meio disso tudo, uma inofensiva partida de xadrez de um bando de adolescentes num adro de uma velha igreja construída por um povo explorado e pobre que chamava a si mesmo de os Pretos da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosário cuja recompensa era ser enterrado juntinho à igreja, em seu descanso final.

Boris Spassky era o campeão daquele ano depois de derrotar um compatriota. Os russos detinham o título de campeão do mundo no xadrez há anos. Vencer no xadrez era orgulho nacional, e a vitória de Spassky sobre Bobby Fischer extrapolaria em muito aquele tabuleiro.

Seriam vinte e uma partidas disputadas na Islândia que se arrastariam por um mês e meio.

Meu herói, ao contrário de mim, era um cara de cenho amarrado, ria pouco. Um pequeno sorriso era tudo. Sempre enfiado no seu terno fora de moda e poucas palavras, a não ser quando tomava umas vodcas, quase ocultamente. Aí falava como uma metralhadora giratória metendo o pau em todo mundo...

Eu lógico, estava fechado com Spassky. Havia muito de decoreba em seu jogo, mas assim como na era de Philidor, era o único que ainda mandava lances que não existiam em nenhum livro. Ele inventava na hora, se adaptava ao jogo, às jogadas, ao jeito do adversário se comportar. Mantinha muito do intuitivo sobre a simples memorização de lances e possíveis desenhos geométricos como na programação de um computador. Boris, meu herói fazia com que nós sonhássemos em jogar como ele um dia...

Então chegou o tal Bobby. Cabelinho tipo Beatles, paletó, gravata, chicletes e jeans. Eu nunca gostei dos Beatles, então torcer o nariz para o americano imperialista e financiador de corruptos foi natural. E principalmente porque o cara tinha umas atitudes totalmente fora do status do xadrez, assim como nós ali, no adro. Mas num campeonato oficial e do mundo, jamais poderiam acontecer.
Ele mascava chicletes durante as partidas, estalando bolas e mascando com a boca aberta fazendo barulho de forma a irritar o russo. Chupava balinhas enrolando e desenrolando o papel para tirar aquele barulhinho enervante. Os juízes chegaram a admoestá-lo várias vezes durante as partidas. Boris ameaçou abandonar o campeonato algumas vezes e por várias pediu tempo aos juízes e foi dar uma voltinha para recuperar os nervos abalados pelo gringo.

O jornal Estado de Minas trazia todos os dias todos os lances de cada partida. Acompanhávamos jogada por jogada reproduzindo com nossas tampinhas cada lance e tentando entender porque fizeram isso, ou porque não fizeram aquilo. Eram espetaculares esses momentos, mas o mais glorioso era antecipar a jogada daqueles grandes campeões.

As partidas tinham hora para iniciar e terminar, assim algumas jogadas cruciais ficavam para o outro dia. E nós ali, tentando adivinhar qual seria o lance. Como o Boris ou o Bobby se safariam das situações perigosas que um impingia ao outro. Antecipar esses lances, descobrir o que fariam a seguir, era a glória para quem acertasse. O que aconteceu uma ou duas vezes. Olha, eu nem dormia à noite. Ansiedade era o nome. Queria saber já, agora, se ele fez o que eu faria, e também não dormiria na noite seguinte se acertasse, a adrenalina não deixaria.

Resumo da Ópera: aquele magricela, branco e feioso, parecendo outro Beatle confuso e místico fazendo rock raso e submisso, levou o título daquele ano derrotando meu Boris Spassky. Foi uma festa nos Estados Unidos que durou meses, mas que deu partida ao início do fim do xadrez no adro do Rosário...

Tudo começou a mudar pouco depois desse campeonato. Todos percebemos que Fischer venceu porque tinha mais lances memorizados. Isso mudou o xadrez no mundo. Nunca mais o jogo seria só duas pessoas e suas percepções.  Nunca mais o Xadrez seria um jogo Intuitivo.

Moisés - Momô do Rosário - e Toninho de Dr. Acácio foram os primeiros a estragarem o jogo no Rosário. Eles passaram a estudá-lo a fundo, buscaram mergulhar nas suas entranhas, conhecer seus segredos, os nomes das jogadas, seus inventores, etc., etc...
Como lobos famintos liam livros, vasculham livros, compravam e trocavam grossos livros, passavam horas e horas perseguindo jogos e jogadas históricas, decoravam lances, situações de tabuleiro, formas de induzir o adversário a certos posicionamentos, a erros... enfim, tiraram do jogo o que ele tinha de mais lindo: o improviso baseado na mais pura percepção. Negaram a inteligência e transformaram o xadrez num jogo de decorebas - simples memorização, como as tabelas e fórmulas matemáticas.

Quer ser bambambã em Matemática? decore as fórmulas e treine a sua aplicação em várias situações. Pronto. Você será até condecorado(a) gênio(a) e melhor aluno(a) do ano! mesmo que não tenha a menor aptidão para a matéria...

Havia um cara mais velho que visitava o morro sempre para uma cerveja e uma partida de xadrez. Moisés e eu o vencíamos fácil, mas a cada dia se tornava mais e mais difícil. Até chegar a um ponto que eu não mais conseguia vencê-lo; e o Moisés, que estudava tudo do jogo, no máximo tirava um empate.

Um dia, estando tudo tão fácil para ele, uma vez tão enfadonho as sucessivas vitórias, esse velho e rico senhor decidiu nos desafiar, Moisés e eu, juntos, na mesma partida.

Nós juntos o derrotamos com facilidade.

Inconformado o desafiante pediu mais uma partida, e foi novamente derrotado. Ele certamente não – e pra dizer a verdade, nem nós – entendíamos os porquês daquilo. Como era possível individualmente sermos presas facílimas para o velho enxadrista, e em dupla o derrotarmos com extrema facilidade?

A resposta depois de alguns dias e muitas outras partidas ficou clara. Juntos tínhamos a Intuição e o Estudo, enquanto que sós, ficava eu cá com minha reles intuição e, do outro lado, Moisés com seu iniciante estudo do xadrez, mas sem a intuição que ia perdendo pouco a pouco...

A lição óbvia era que, se eu quisesse literalmente me manter no jogo teria que obter minhas decorebas, e Moisés deveria levar sim seus estudos, mas nunca deixar que o conhecimento adquirido sobrepujasse a sua Intuição.

Intuição e Conhecimento devem trabalhar juntos em qualquer situação.

Contudo, depois do adro da Igreja do Rosário, nunca mais joguei uma partida de xadrez...

 

 


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